sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Diário de um caminhoneiro - O Fim

Parte 2


Quando a vi, ela estava toda animada. Tinha conseguido um emprego numa fazenda da região. Iria ensinar os trabalhadores a ler e escrever. Disse que o salário não era bom, mas pelo menos ia fazer o que mais gostava, ensinar. E desatava a falar dos seus sonhos de ver uma sociedade mais justa, com boa educação para todos. Ah, como ela era sonhadora! Depois de um tempo, começamos a sair frequentemente e eu somente a escutar. Burro como era, tinha vergonha de falar as coisas com uma dama tão sabida. Percebendo isso, ela dizia: Beto, deixa eu lhe ensinar as coisas, deixa? Me chamava de Beto, não Betão, achava este último, um nome grosseiro, coisa de peão. Ora, e o que mais eu era? Minha gente, com um pedido vindo daquela menina/mulher como haveria eu de dizer não? Sim, Alfinha, eu deixo. E me ensinou - ou tentou - por que eu mais prestava atenção aos seus gestos delicados do que em suas palavras. Eu era um bom aluno, atencioso demais. E estarei mentindo se disser que não aprendi algo, pelo contrário, Alfinha abriu meus olhos para o mundo. Se não fosse ela, não saberia como organizar as palavras e nem estaria escrevendo este texto.

A cada dia eu me apaixonava mais. "Beto, leia esses versos para mim: "Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente..."
Ah, Alfinha leio estes e todos os outros que você mandar, pois meu coração já está completamente em chamas, assim eu pensava. Foi numa dessas leituras, que eu a beijei pela primeira vez. Quando estava a recitar "É querer estar preso por vontade", não me contive e a trouxe para perto de mim, finalmente beijando aquela tão desejada boca. E para minha surpresa, ela disse: "É cuidar que se ganha em se perder." E ali, começamos nossa relação, um namoro, noivado, casamento, chame do que quiser, o que tínhamos, eu sabia, seria para sempre, como ela mesma dizia, "que seja eterno enquanto dure".

Numa dessas "bubiça" de apaixonados, ela me falou uma coisa engraçada. "Beto, juntando o meu nome e o seu, sabe o que forma?" E eu respondi: "Sei lá, Alfinha, pensar é pra você, querida."
E ela disse em meio a risos. "Alfabeto". Eu ri. Céus! Além de linda, era engraçada! E daí em diante seríamos como alfabeto, e não poderia ser Alfa ou Beto, pois só o alfabeto dava sentido às coisas. É claro que foi ela quem disse isso, afinal eu não tinha mente para essas criações de pessoas inteligentes.

Se passaram dois anos, e eu peão xucro indomável, havia sido laçado e estava decidido a fincar pé naquela cidadezinha. Eu e Alfinha iríamos nos casar, a casinha já estava sendo construída. Não podíamos estar mais felizes, eu virei o construtor da cidade e Alfinha a professora mais querida. Nessa época, comecei a pensar: Algo de ruim vai acontecer, pobre não tem tanta felicidade de graça, não mesmo.

Numa dessas noites do mês de Março, Alfinha iria explicar aos seus alunos sobre a Origem da Vida, uma tal de Evolução, algo assim. Tinha falado num tal de Big Bang, que eu entendi por Big Bem e passei a chamá-la de Meu Big Bem. E ela riu, riu, mas sorriu como se aquilo fosse piada. Não sei como e nem porque, mas ela gostava da minha ignorância. Me deu um beijo, e lá se foi. Quando voltou da aula, não estava mais tão feliz.

A sua idéia de aula diferente e interessante foi por água abaixo. Suas alunas beatas começaram a gritar com ela. Falaram que Alfinha estava possuída pelo demônio, que foi Deus, nosso Senhor Jesus Cristo quem tinha criado a Terra e as pessoas e não tinha nada de explosão. Chamaram-na de bruxa, enviada do Diabo para desviar as almas da fazenda e da cidade. Minha Alfinha logo saiu correndo da fazenda para que não apanhasse daquelas velhas ignorantes. Disse que não voltava lá mais. E não voltou. Depois desse episódio, passou a ficar em casa cuidando da tia gorda e adoentada, D. Mirtes.

Dia 20 de Março, às 18 horas. Ah, como não me sai da cabeça tal data e hora, creio que nunca irá sair. Eu estava indo fazer uma visita à Alfinha, quando ao virar a esquina e entrar na sua rua, vejo chamas crepitando, uma luz amarelada de fogo a iluminar as outras casas, e um fumaceiro tomando conta do céu. Ai de mim! Era a casa de Alfinha! Me desesperei e tentei em vão adentrar na casa: "Me soltem diacho, meu amor está lá dentro! ALFINHA! " Os homens dali, não iriam me deixar entrar nem por reza braba. Já era tarde demais para qualquer salvamento. Então, ajoelhei e comecei a chorar e chorar, era apenas o que conseguia fazer. Quando olhei para uma parede que ainda não tinha sido consumida pelo fogo, li escrito com tinta vermelha: Queime Bruxa do Inferno, queime no fogo que você tentou atear aos nossos corações! Pois olhe que ironia do destino! Foi para isso que ela as ensinou a escrita.

Ao mesmo tempo que o ódio por aquelas malditas tomava conta de mim, eu me lembrava de Alfinha dizendo: "Amor é fogo que arde sem se ver." Pois eu lhe digo, minha querida, amor é fogo que arde e faz doer; é ferida que dói e se sente; é um desgraçamento descontente; é dor que desatina e faz morrer. Ah Alfinha, por que se foi? Por quê?

Após sua morte, lembro-me de ter feito duas coisas consideráveis em minha vida. A primeira, foi escrever um diário - pedido constante daquela que se foi - que inicio aqui, com essas primeiras palavras. A segunda - e ela que me perdoe, pois sua alma pura não concordaria nunca - foi fazer aquelas beatas malditas conhecerem o verdadeiro fogo do inferno. Ateei fogo em cada uma delas, mas as fiz morrer lenta e gradualmente, as fiz sentir a mesma dor que sinto todos os dias, aquela que vai matando aos poucos.

Hoje, mesmo sabendo ler e escrever, digo às pessoas que sou um analfabeto, pois nunca mais vi Alfa e Beto em minha vida. Nunca mais...
De um poema inspirado na Bíblia nosso amor nasceu e de conceitos ensinados pela Bíblia, o meu amor morreu. Oh Deus, por quê?
Mas o poema já dizia:
"É ter com quem nos mata lealdade."

4 comentários:

Marcos Pinheiro disse...

Caramba, quanta reviravolta sofreu o final da história do AlfaBETO, hein? Quanta imaginação, sô! Dorei demais da conta!

Anônimo disse...

Natália,muito bem escrito. Prende a atenção da gente. Pena ser tão triste. Bom fim-de-semana prá você e um carinhoso beijo. Manoel.

Paloma disse...

Achei genial a junção dos nomes (e corações), fazendo alusão ao enredo da história.
A Teoria da Evolução fez-me lembrar as palestras relacionadas que já assisti e os professores que são erroneamente taxados de hereges.
Contudo, achei a, digamos, Fogueira da Inquisição um tanto surrealista porém inesperada, afinal estavam os dois tão felizes juntos(!).
Ainda assim, gostei. Como sempre :)

Abraços!

Mulher Vã disse...

Linda, inspiradíssima! Não se perdeu nem um tantinho.

=)

Beijo

Vã.