Parte 2
Quando a vi, ela estava t

oda animada. Tinha conseguido um emprego numa fazenda da região. Iria ensinar os trabalhadores a ler e escrever. Disse que o salário não era bom, mas pelo menos ia fazer o que mais gostava, ensinar. E desatava a falar dos seus sonhos de ver uma sociedade mais justa, com boa educação para todos. Ah, como ela era sonhadora! Depois de um tempo, começamos a sair frequentemente e eu somente a escutar. Burro como era, tinha vergonha de falar as coisas com uma dama tão sabida. Percebendo isso, ela dizia:
Beto, deixa eu lhe ensinar as coisas, deixa? Me chamava de Beto, não Betão, achava este último, um nome grosseiro, coisa de peão. Ora, e o que mais eu era? Minha gente, com um pedido vindo daquela menina/mulher como haveria eu de dizer não?
Sim, Alfinha, eu deixo. E me ensinou - ou tentou - por que eu mais prestava atenção aos seus gestos delicados do que em suas palavras. Eu era um bom aluno, atencioso demais. E estarei mentindo se disser que não aprendi algo, pelo contrário, Alfinha abriu meus olhos para o mundo. Se não fosse ela, não saberia como organizar as palavras e nem estaria escrevendo este texto.
A cada dia eu me apaixonava mais.
"Beto, leia esses versos para mim: "Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente..." Ah, Alfinha leio estes e todos os outros que você mandar, pois meu coração já está completamente em chamas, assim eu pensava. Foi numa dessas leituras, que eu a beijei pela primeira vez. Quando estava a recitar
"É querer estar preso por vontade", não me contive e a trouxe para perto de mim, finalmente beijando aquela tão desejada boca. E para minha surpresa, ela disse:
"É cuidar que se ganha em se perder." E ali, começamos nossa relação, um namoro, noivado, casamento, chame do que quiser, o que tínhamos, eu sabia, seria para sempre, como ela mesma dizia,
"que seja eterno enquanto dure".Numa dessas "bubiça" de apaixonados, ela me falou uma coisa engraçada.
"Beto, juntando o meu nome e o seu, sabe o que forma?" E eu respondi: "Sei lá, Alfinha, pensar é pra você, querida."
E ela disse em meio a risos.
"Alfabeto". Eu ri. Céus! Além de linda, era engraçada! E daí em diante seríamos como alfabeto, e não poderia ser Alfa ou Beto, pois só o alfabeto dava sentido às coisas. É claro que foi ela quem disse isso, afinal eu não tinha mente para essas criações de pessoas inteligentes.
Se passaram dois anos, e eu peão xucro indomável, havia sido laçado e estava decidido a fincar pé naquela cidadezinha. Eu e Alfinha iríamos nos casar, a casinha já estava sendo construída. Não podíamos estar mais felizes, eu virei o construtor da cidade e Alfinha a professora mais querida. Nessa época, comecei a pensar: Algo de ruim vai acontecer, pobre não tem tanta felicidade de graça, não mesmo.
Numa dessas noites do mês de Março, Alfinha iria explicar aos seus alunos sobre a Origem da Vida, uma tal de Evolução, algo assim. Tinha falado num tal de Big Bang, que eu entendi por Big Bem e passei a chamá-la de
Meu Big Bem. E ela riu, riu, mas sorriu como se aquilo fosse piada. Não sei como e nem porque, mas ela gostava da minha ignorância. Me deu um beijo, e lá se foi. Quando voltou da aula, não estava mais tão feliz.
A sua idéia de aula diferente e interessante foi por água abaixo. Suas alunas beatas começaram a gritar com ela. Falaram que Alfinha estava possuída pelo demônio, que foi Deus, nosso Senhor Jesus Cristo quem tinha criado a Terra e as pessoas e não tinha nada de explosão. Chamaram-na de bruxa, enviada do Diabo para desviar as almas da fazenda e da cidade. Minha Alfinha logo saiu correndo da fazenda para que não apanhasse daquelas velhas ignorantes. Disse que não voltava lá mais. E não voltou. Depois desse episódio, passou a ficar em casa cuidando da tia gorda e adoentada, D. Mirtes.
Dia 20 de Março, às 18 horas. Ah, como não me sai da cabeça tal data e hora, creio que nunca irá sair. Eu estava indo fazer uma visita à Alfinha, quando ao virar a esquina e entrar na sua rua, vejo chamas crepitando, uma luz amarelada de fogo a iluminar as outras casas, e um fumaceiro tomando conta do céu. Ai de mim! Era a casa de Alfinha! Me desesperei e tentei em vão adentrar na casa:
"Me soltem diacho, meu amor está lá dentro! ALFINHA! " Os homens dali, não iriam me deixar entrar nem por reza braba. Já era tarde demais para qualquer salvamento. Então, ajoelhei e comecei a chorar e chorar, era apenas o que conseguia fazer. Quando olhei para uma parede que ainda não tinha sido consumida pelo fogo, li escrito com tinta vermelha:
Queime Bruxa do Inferno, queime no fogo que você tentou atear aos nossos corações! Pois olhe que ironia do destino! Foi para isso que ela as ensinou a escrita.
Ao mesmo tempo que o ódio por aquelas malditas tomava conta de mim, eu me lembrava de Alfinha dizendo:
"Amor é fogo que arde sem se ver." Pois eu lhe digo, minha querida, amor é fogo que arde e faz doer; é ferida que dói e se sente; é um desgraçamento descontente; é dor que desatina e faz morrer. Ah Alfinha, por que se foi? Por quê?
Após sua morte, lembro-me de ter feito duas coisas consideráveis em minha vida. A primeira, foi escrever um diário - pedido constante daquela que se foi - que inicio aqui, com essas primeiras palavras. A segunda - e ela que me perdoe, pois sua alma pura não concordaria nunca - foi fazer aquelas beatas malditas conhecerem o verdadeiro fogo do inferno. Ateei fogo em cada uma delas, mas as fiz morrer lenta e gradualmente, as fiz sentir a mesma dor que sinto todos os dias, aquela que vai matando aos poucos.
Hoje, mesmo sabendo ler e escrever, digo às pessoas que sou um analfabeto, pois nunca mais vi Alfa e Beto em minha vida. Nunca mais...
De um poema inspirado na Bíblia nosso amor nasceu e de conceitos ensinados pela Bíblia, o meu amor morreu. Oh Deus, por quê?
Mas o poema já dizia:
"É ter com quem nos mata lealdade."